QUADRINISTAS

André Valente: Macanudismo

André Valente escreve nas paredes. Ou foi contratado, no caso, para escrever pelas paredes em pelo menos duas ocasiões: é ele que escreve sobre as tiras de Liniers as traduções das tiras do argentino que estão na Macanudismo, exposição que fica até 1/9 em São Paulo (no Centro Cultural Correios, de terça a domingo, 11 às 17h, entrada franca, www.macanudismo.com.br).

Valente já fez isso em outra vez que a Macanudismo veio ao Brasil: no Rio de Janeiro, em 2012. Na época, também traduziu algumas das tiras. Mas sua função principal é letreiramento: reproduzir a letra manual de Liniers, também manualmente, em cima de cada tirinha original colada na parede. (A exposição também esteve em Brasília em 2013, mas sem a participação do André.)

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Tenho grande interesse por esse cruzamento tradução x letreiramento, pois é o tema da minha tese de doutorado em produção (resumindo: letreiramento, na tradução de HQ, também é tradução). Mandei um email para o André perguntando como foi a experiência e ele foi generosamente detalhista. Aí perguntei se ele topava publicar a resposta no blog.

André Valente não fica só escrevendo nas paredes. Também é quadrinista com uma produção que eu acho uma lástima por ser tão excelente quanto mínima. Acho que o que ele fez de melhor está nas F A B I O (projeto estacionado, infelizmente) e na única edição da Não Fui EuEle tem um blog antigo com outras HQs feitas pra web e andou détournamentando Charles Schulz. Ultimamente, vejo que ele anda desenhando gente e serigrafando com a Ilustrativa. E tem um Tumblr.

No texto, ele obsessiva-compulsivamente explica letreiramento de transposição. E me prometeu mais fotos, em breve. Espero ir a São Paulo a tempo de ver a exposição.

(O verbo é letreirar ou letrerar? Vou usar letreirar. O corretor deu linha vermelha em ambos…)

Eu fui chamado pra ajudar na montagem da exposição Macanudismo no Rio, em 2012. Não lembro agora se a ideia era traduzir algumas tiras, ou todas, ou se foi um desafio que a Bebel Abreu, a produtora, me lançou em cima da hora. Mas a ideia partiu da Bebel, que é minha amiga de longa data e conhece minha afinidade por letreiramento (fizemos um curso de caligrafia juntos, aliás). O fato é que, de 500 tiras, eu consegui traduzir umas 300 (uma faixa central, pra facilitar a leitura de quem não sabe castelhano). Eu traduzi à lápis, direto na parede, tentando copiar a letra do Liniers o máximo possível. Em três dias.

Nessa exposição do Rio eu não posso dizer que traduzi tudo, só que letreirei. O Cláudio Martini, que traduz e publica o Macanudo no Brasil estava lá, e foi generoso em compartilhar as traduções que tinha feito, não só pros publicados mas até pros livros ainda no prelo. Eu e a equipe de montagem tentávamos identificar as tiras e colar as traduções, ao mesmo tempo que colávamos as tiras, ao mesmo tempo em que eu letreirava, e isso foi tomando muito tempo. Eventualmente acabei abandonando as traduções do Cláudio porque achei mais fácil traduzir à medida que letreirava. Quando tinha dúvida, usava o texto do Cláudio como referência. No fim da montagem o próprio Liniers estava presente e tirou as dúvidas mais cabeludas.

O trabalho na exposição acaba que vira mais uma intervenção do que uma tradução padrão, é um complemento. Até porque é uma tradução de justaposição, e não de substituição. O original fica exposto e a tradução fica em volta. O trabalho do Liniers não tem muito um padrão, exceto a parte escrita, que ele geralmente escreve na mesma letra serifada à pena (as traduções são feitas com uma versão digital dessa letra, que o próprio mandou fazer, acho – a equipe dele forneceu essa fonte pra produção da exposição, com cláusula em contrato impedindo distribuir). O estilo solto dele contribui pra um letreiramento mais livre, sem régua (nem sonharia em letreirar um Chris Ware sem um jogo de esquadros, por exemplo). Ele às vezes coloca os textos narrativos na parte de cima da tira, às vezes na de baixo (tem uma série, “Gente que Anda por Aí”, que alterna dentro da mesma tira). E ele também faz umas brincadeiras formais, com espirais de texto, texto de cabeça pra baixo, texto inclinado (nas séries “Conceitual Incompreensível” e “Misterioso Homem de Negro”, assim como nas tiras de pinguins e duendes). Eu tentei respeitar essas orientações, aproximando da borda da tira o texto traduzido, na posição mais próxima do texto original. Tentei evitar o máximo que pude letreirar na borda de baixo da tira porque muitas vezes a sombra do original encobria o texto.

Os títulos das tiras geralmente são feitos com letras bem rebuscadas, um “lettering” bem desenhado. Esses, por gosto pessoal, eu fiz questão de reproduzir da forma mais próxima possível, mesmo quando a tradução era mínima ou desnecessária (como na série “Las verdaderas aventuras de Liniers”, ou “Conceptual Incompreensible”)

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Depois de um tempo eu descobri que tinha umas liberdades que as traduções comuns não permitem. Eu não precisava me prender ao espaço do quadro, por exemplo. O texto podia vazar um pouco. Às vezes, quando um mesmo personagem fazia um discurso que se dividia por todos os quadros da tira, a tradução podia correr longa, numa linha só. Eu podia variar o tamanho da fonte também. Essas coisas eram bacanas de trabalhar, e de descobrir em que momentos isso ajudava a leitura, e em que casos isso atrapalhava. É muito reconfortante saber que o leitor tem o original na frente pra usar como referência.

E tem o fator maratona do trabalho todo. Eu tinha pouquíssimo tempo pra fazer todo o trabalho, então contava quantas tiras por minuto eu fazia, quantas horas de trabalho faltavam pra terminar. A decisão de abandonar a tradução do Cláudio foi só por conta do tempo, é muito raro que eu tenha discordado do trabalho dele. A exposição veio para Brasília, por exemplo, e eu não pude letreirar as traduções porque o espaço não permitia que eu ficasse na galeria quando ela estivesse fechada. Fizemos as contas e infelizmente não daria tempo, mesmo sendo na minha cidade.

O que eu descobri, acho que no segundo dia de trabalho no Rio, era que eu não tinha tempo de serifar todas as tiras (as serifas são aqueles tracinhos no fim de letras mais rebuscadas, o que diferencia Times de Arial, basicamente). Tem um cansaço que dá no pulso de voltar e serifar cada letra, então abri umas exceções (especialmente nas tiras mais difíceis de alcançar, no alto) e traduzi várias com outra fonte. Eu consigo letreirar de forma bem aproximada do Liniers, especialmente com a letra dele por perto como referência, mas eu descobri que a minha própria letra com serifa (que é ligeiramente diferente da dele) sai bem mais rápido. Em algumas tiras com muito texto, usei minha própria letra serifada; em outras, uma letra sem serifa – deixei o contexto e o tom da tira ditar. Isso também ajuda a driblar o cansaço de letreirar 150, 200 tiras em um dia. Parte da escolha de variar foi pra evitar algum tipo de lesão no pulso (desenhar na parede é difícil, e quanto mais cansado eu fico, mais forte eu aperto a lapiseira) e também porque eu imaginei que o próprio Liniers aprovaria uma tradução mais anárquica (ele esteve lá, ele apoiou minha decisão). De novo, esse é um luxo da tradução de justaposição. Me recusaria a fazer o mesmo se tivesse mais tempo ou se o trabalho fosse de substiuição, em um livro.

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No último dia da montagem no Rio, as pessoas estava fazendo fila pra entrar e nós ainda estávamos lá dentro, pendurando quadro. A Bebel teve alguns problemas burocráticos pra resolver e eu tive que ajudar na montagem em si. Ou eu ajudava a pendurar as obras ou a exposição não abria. Isso fez com que ficassem várias tiras sem tradução, um erro que meu transtorno obsessivo compulsivo não permite. Isso tirou meu sono por vários meses.

Em São Paulo, esse ano, a coisa foi diferente. Eu tive três dias e meio, das oito da manhã até dez da noite, longe da abertura da exposição, pra traduzir. A maioria das tiras ainda não foi publicada no Brasil ou até mesmo nos livros originais, então eu tive que fazer a tradução do zero. Eu tive acesso às tiras em formato digital meses antes da montagem, pra preparar a tradução e buscar termos difíceis antes do trabalho de letreiramento em si. Fiquei meio agoniado com o retrabalho, ter que digitar traduções e imprimir pra depois escrevê-las à mão. Me pareceu mais direto já ir traduzindo na parede (a Bebel discorda veementemente, e ficou chateada de eu ter abandonado essa tradução prévia – não tiro a razão dela). Cheguei com 100 tiras traduzidas e, no decorrer do dia, anotava os termos que me deixavam em dúvida pra pesquisar no hotel (a galeria não tinha wi-fi) e poder traduzir no dia seguinte.

Os maiores desafios foram alguns termos intraduzíveis (uma tira dependia da brincadeira com o nome de um peixe, “pezugo” que virava um tipo de sereio, “pez hugo” – quando em português o pezugo se chama “pargo”), uma ou outra expressão local (na argentina se usa a expressão “se clava el chancho” que é uma prima distante da nossa “a vaca vai pro brejo”) e algumas canções mencionadas dentro das tiras (dessas me utilizei do bom e velho N. do T. e avisei de quem era, o nome da canção). No Rio eu traduzi um poema, preservadas as rimas, e o Liniers comentou “agora você está se exibindo”. A mais demorada em São Paulo tinha um palíndromo. Não lembro como era o original (alguma coisa como “La luz azul azula la luna”), ou como traduzi (algo como “Raul e o luar”). Mas eu fiz funcionar.

Bem, acho que o Macanudismo é isso.

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Lá no começo do mundo (2000? 2001?) eu entrei na onda da fonte digital, fiz a minha própria (se chamava Piloto Retro Projetor, que infelizmente eu perdi) e ajudei o Nate Piekos da Blambot a fazer uma versão internacional de uma fonte dele (Acme, acho). A versão seguinte tinha um thanks pra mim no código. A posterior não tinha mais. Até hoje gosto de pensar, quando vejo um letreiramento da Blambot, que tem um pedacinho do meu trabalho lá.

Eu fiz a fonte digital do Gabriel Góes, que ele usou no Vestido de Noiva. Hoje acho que ele imprime em azul e letreira por cima, pra parecer mais orgânica.

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Tradução impressa mesmo eu só fiz a do Softcore 1, do Box Brown, pro Fabio. O Box Brown deu o zine de presente pra gente (fomos os primeiros a publicar ele no Brasil), eu fiz uma biblioteca de letras à partir da letra dele, e construi um template de espaçamento pra letreirar à mão, respeitando as características da letra dele. Acho que ficou legal. Parece que foi ele.

Eu gosto de letreiramento que não se percebe, as fontes digitais me dão uma certa agonia. Hoje eu faço questão de letreirar meus quadrinhos à mão (exceto quando a história pede outra coisa), mas já passei por uma fase digital. Lembro de ter lido o Spiegelman dizer que os quadrinhos são o único meio em que se pode ler o texto na letra do próprio autor, e isso por si só já adiciona uma pessoalidade aos quadrinhos que os outros meios não têm. (Acho que foi no catálogo da exposição do Maus, que é meio uma raridade, porque tinha vários ensaios dele. Posso estar enganado, mas tenho a impressão que esses textos foram compilados no Metamaus). Eu concordo, o letreiramento à mão é mais uma camada de leitura da obra.

O Lucas Gehre, meu amigo e quase vizinho, faz o design e o letreiramento de vários títulos d’A Bolha Editora, como o Gary Panter e outras preciosidades. Já joguei um xaveco pra Rachel Gontijo Araujo, a editora e chefe do Lucas, no estilo de “nossa, você nem imagina o carinho com que eu me debruçaria no letreiramento de um gibi do Seth”. Mas não colou. Acho que a Bolha publicou o Wimbledon Green esse ano, aposto que com letras do Lucas mesmo.

Também ofereci pro Coutinho pra traduzir o lettering das aberturas de página do Beijo Adolescente nas edições estrangeiras. Aguardo a sua ligação qualquer dia desses.

Macanudismo - André Valente

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