LENDO

As Portas do Éden

Nunca aprendi a gostar de poesia. Tenho a impressão de que poesia é uma coisa que se aprende a ler em casa – tendo um pai que recita Drummond ou Keats de cor ou, no mínimo, uma professora que convence. Tive e tenho pais e professores ótimos, mas nenhum que tenha me empurrado nesse sentido. Ler poesia, ou a maioria das poesias que já li, me dá um certo nervosismo; é uma velocidade que eu não conheço direito. Acho, porém, que aprendi a ver poesia na prosa e a tentar alguma profundidade estética no que escrevo, mínima que seja para não parecer robótico. E também acho que aprendi a ver poesia nos quadrinhos.

Porque o que o Kioskerman faz em Portas do Éden me parece poesia neste sentido de assumir uma outra velocidade. E, apesar de meus problemas de ordem poética, com o Kioskerman eu topo descer a marcha.

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Em Portas do Éden, daria para chamar estas pequenas histórias – tiras, na verdade – de haikais ou de alguma outra forma de poesia curta. Todas têm impreteríveis quatro quadros. As palavras são mínimas. Texto e imagens correm em paralelo, geralmente sem se tocar se não na cabeça do leitor.

Uma escada que desce por um buraco no meio da grama: “Você perdoa minhas misérias”. Um homem chega à escada: “E eu perdoo as suas.” O homem desce pela escada, escuro ao seu redor: “Há anos decidimos flutuar na luz”. O homem e uma mulher sorrindo, de olhos fechados: “Que corre por baixo de nossos vulcões.”

Fazer a junção entre cada imagem e cada frase se assemelha, para mim, a essa troca de marcha que exige a leitura de poesia. Contudo, não me causa nervosismo algum. Pelo contrário: é convidativo. Penso que seja o encanto das imagens em si (a descrição que eu faço acima obviamente não reproduz o traço de Kioskerman), pois também considero que o texto, sozinho, já valeria como bela poesia.

Porque, afinal: “Há anos decidimos flutuar na luz / Que corre por baixo de nossos vulcões”. Outra: “Temo voltar com as mãos vazias. / Temo que o rio onde pesco seque. / Temo que minha noite fique fragmentada. / Como as noites na pele do leopardo.” Mais: “Sexta-feira de manhã, um veleiro no estuário. / Terça-feira ao meio-dia, dormir descalço. / No primeiro de janeiro, discutir com serpentes marítimas. / Todo dia, roubar-te a noite.”

Apesar de eu não saber ler poesia, sei apreciar aquele capítulo sobre o beijo no Jogo da Amarelinha do Cortázar (argentino como Kioskerman) e entendo um pouquinho do prazer que é ter essas frases que rolam pela língua, o puro prazer de uma frase bem construída também pelo que ela diz, mas mais pelo que ela soa.

78web

Portas do Éden também faz aquele jogo econômico de palavras mínimas (e imagens vastas) onde você pode encaixar o que quiser – e ainda assim você acha que Kioskerman está falando de algo sincero, pessoal, difícil de colocar em palavras (e imagens) e que você também reconhece como seu. Embora esse jogo entre mistério e conexão às vezes fique no mistério, muito do que ele diz ressoa – como as próprias Portas do Éden, citadas várias vezes nas tiras.

(Nessa coisa do mistério/ressonância, Kioskerman fez uma das tiras mais lindas que já li na vida num rabisco pro Twitter: chama-se “There’s a Place”, e diz: “Existe un pais / Adentro de mi cabeza / Donde la práctica religiosa / De la población entera / Consiste en observar a un bebe por horas / Sin pensar absolutamente nada”.)

Claro que é fácil ler qualquer das tiras como pieguice, melodrama. Arriscando ver algumas delas como autobiografia, percebe-se um Kioskerman escrevendo apaixonado, tenso e, em vários casos, esperando e/ou tendo um filho. Se a sua tolerância for baixa a esse tipo de “pieguice”, não leia. Mas se, como eu, o livro conseguir convencê-lo a entrar em outra marcha, a experiência é, como diz o final de uma das tiras, “receber na língua o pó das estrelas”.

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A edição brasileira, da Lote 42, tem cuidados excepcionais como esmero na tradução de Cecilia Arbolave (“Rio no rio e descanso no remanso / Do amanhecer / Ao anoitecer / Faço o que me apetecer”: ouso arriscar que é melhor que o original), papel, impressão e encadernação. Pequenos deslizes, como os das páginas 73 e 97 (desculpem), talvez passem despercebidos pela maioria dos leitores.

A Lote 42 também montou um belo minisite para promover o livro e é uma das organizadoras da exposição que leva o mesmo nome – no Epicentro Cultural, em São Paulo, até 8 de maio. Infos aqui. Queria muito ir.

Capa Eden Frente

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