Cinema Purgatorio Annotato: volume 3, história 2: “E As Trevas Mexeram-se”
O site Cinema Purgatorio Annotato compilou uma série de apontamentos sobre Cinema Purgatorio, a série comandada por Alan Moore e Kevin O’Neill. É um guia para ler os contos da sala de cinema captando todas, ou quase todas, as referências que os autores despejam para contar a macabra história de Hollywood.
Traduzi o volume 3 de Cinema Purgatorio (Panini, outubro/2019, 152 páginas, disponível aqui) e, como não podia deixar de ser, me servi muito do Cinema Purgatorio Annotato. Perguntei aos dois principais autores do site, Alexx Kay e Joe Linton, se podia traduzir os comentários e publicar aqui. Eles toparam.
Vale uma recomendação: leia a HQ, só a HQ, primeiro; depois leia com acompanhamento dos comentários. É melhor.
Cinema Purgatorio 8: “E as Trevas Mexeram-se”
(Annotations originais em inglês)
Obs.: Tem umas coisas que parecem óbvias, mas nunca se sabe quem vai ler estes comentários e o conhecimento que tem. Se deixamos alguma coisa de lado ou entendemos errado, avise nos comentários.
Visão geral: A narradora assiste a um filme de animação com versões cartum dos criadores do Gato Félix.
- O filme dentro da HQ usa animais animados para contar as histórias de Pat Sullivan e Otto Messmer, os animadores responsáveis pelo Gato Félix.
- Similar a edição anteriores, esta história trata primariamente de como instâncias superiores abusam e se aproveitam de artistas.
- A série “Splash Brannigan”, que Moore fazia em Tomorrow Stories, da linha ABC Comics, também teve influência dos primórdios da animação em preto e branco. A referência mais evidente está em “Specters from Projectors!?!!”, de Moore e Kyle Baker, em ABC 64 Page Giant n. 1 [inédita no Brasil].
A Capa Original
- Da esquerda para a direita, os bicho-cartum são:
• O Gato Otz, baseado em Gato Félix e no animador Otto Messmer.
• Betty Boop, fazendo as vezes de Marjorie Sullivan, esposa de Pat Sullivan.
• O Cachorro Pat, baseado no produtor de Félix, Pat Sullivan. Embora o cachorro não lembre diretamente a figura real, a opção pelo cão pode ter baseado-se no cão Bimbo, o primeiro par romântico de Betty Boop.
• um barman Muppet com cara de cachorro
• na esquerda inferior, um faxineiro humano não identificado. A versão humana de Pat Sullivan, quem sabe?
- Os balões de pensamento mostram Otz pensando em Pat altivo e sóbrio, enquanto Pat pensa em Otz sobre montanhas de páginas, sendo ambos pontos de vista subjetivos de um passado alegre.
- A relação entre os dois lembra outra que envolve um gato desenhado no início do século 20: Krazy Kat. Krazy (um gato ou gata) amava Ignatz (uma rato decididamente masculino), enquanto Ignatz desprezava e abusava de Krazy. Offisa Pup, por sua vez, tinha amor não correspondido por Krazy e sempre prendia Ignatz pelo seu comportamento violento.
Página 1
quadro 1
- “Seu diabinho” tem duplo sentido. Enquanto a narradora fala no sentido sexual e perverso, também é um prenúncio da situação real da personagem, que está morta e em uma espécie de purgatório.
quadro 3
- “Os Dedos da Morte” ou “A Mão Decepada” (The Beast with Five Fingers) é um filme de terror/mistério de 1946.
- “As Mãos de Orlac” é um livro de body horror de 1920 que virou vários filmes, incluindo um de 1960.
- Perceba que ambos são filmes de “mãos malignas”, prenunciando a mão que aparece na página 6.
- O “X” no cartaz é a classificação indicativa do filme. De 1951 a 1970, no Reino Unido, a classificação “X” restringia a entrada a 16 anos ou mais. Em 1971, a idade passou a ser de 18 anos.
quadro 5
- “Cantigas Controversas” é um jogo com títulos famosos nas linhas de cartuns dos primeiros tempos da animação, como “Merrie Melodies”, “Silly Symphonies” etc.
- Primeira aparição d’O Gato Otz, baseado no animador Otto Messmer, que se afirma criador do Gato Félix.
- Primeira aparição d’O Cão Pat, baseado no produtor de animação Pat Sullivan, que também se dizia criador do Gato Félix.
- Os desenhos do Gato Félix costumavam mostrar álcool, mas não tanto quanto nesta história.
Página 2
quadro 1 e seis páginas seguintes
- • A quadriculação das seis páginas deste filme dentro do gibi segue um padrão uniforme: quatro fileiras de dois quadros. Esta formatação só acontece nesta edição e em Purgatorio n. 16 [no Brasil, Cinema Purgatorio vol. 6, primeira história]. O formato parece referência às telinhas dos televisores, em comparação aos filmes em tela grande.
quadro 2
- “É mudo, mas tem os balões” faz referência a como os primeiros filmes de Félix eram mudos, mas traziam diálogos em “balões” quadrados como os que aparecem nesta história.
quadro 4
- “Você merecia o crédito” refere-se a como Pat Sullivan ficou, em vida, com crédito total por Félix. Ver mais em p5q3.
- “De degrau em degrau” tem duplo sentido.
- O retrato de rato em duas molduras pode ser de um personagem antigo que Sullivan criou/produziu.
quadros 5-8
- Observe como Félix pega o ponto de interrogação que indica sua perplexidade e usa como chave. É típico do surrealismo que se vê nos desenhos animados de Félix.
- Estes quadros formam uma sequência em plano fixo. A frequência deste tipo de sequência nesta edição reflete como elas são comuns em desenhos animados, dado que poupam tempo e dinheiro.
quadro 6
- “Criou o personagem…” refere-se à disputa em relação a qual dos dois “criou” Félix. Ninguém, porém, discute que Messmer fez o grosso do desenvolvimento do personagem.
Página 3
quadro 1
- Os quadros 1-8 das páginas 3-4 formam uma sequência em plano fixo.
- “Marjorie” é a esposa de Sullivan (retratada e nomeada aqui), que a Wikipedia em inglês chama incorretamente de “Margaret, sobrenome de solteira Hayes”. Esta biografia comenta o “acidente”: “Houve muita especulação quanto à morte da esposa, devido à queda da janela do apartamento dos dois. Havia provas de que ela se envolveu com o chofer e que o marido sabia. Pat Sullivan estava presente quando ela caiu, mas ele nunca foi acusado de crime.”
- Observe a quantidade de garrafas de álcool sobre o móvel, a pilha ao lado do móvel, na lixeira etc. para refletir o alcoolismo de Sullivan.
quadro 5
- “Anne” é a esposa de Otto Messmer; ele casou-se com Ann Mason. (Várias fontes citam o nome dela sem o “e”.)
- Sullivan diz que “abri um bordel e passei sífilis pra Marjorie”. Isto é citado nesta biografia, a qual declara: “[Sullivan] usou seus lucros com Félix… para financiar vários bordéis. Sullivan sofria de sífilis e suas faculdades mentais ficaram prejudicadas.”
quadro 6
- “Estuprei aquela menina de catorze” refere-se à condenação de Sullivan por estupro em 1917. Vale mencionar que Marjorie casou-se com ele enquanto ele estava solto sob fiança e aguardando julgamento!
Página 4
quadro 2
- “Quem sabe se tivéssemos som” refere-se a Sullivan ter adicionado som aos desenhos de Félix muito depois de outros animadores. A Wikipédia em inglês diz: “em fins de 1928, Sullivan, depois de anos recusando-se a converter Félix a desenho falado, finalmente aceitou usar áudio nos desenhos de Félix. Infelizmente, Sullivan não fez o processo com cuidado e inseriu som em desenhos que o estúdio já havia finalizado.”
- “Walt, o Camundongo” refere-se ao animador e empresário Walt Disney. O camundongo refere-se, é claro, ao famoso Mickey Mouse de Disney. Há algo de verdade no que Pat afirma, vide notas do quadro seguinte.
- A popularidade de Mickey cresceu ao mesmo tempo que a de Félix caiu. Um dos motivos era que os desenhos de Mickey foram os primeiros falados.
quadro 3
- “filme da Alice” refere-se aos primeiros filmes animados inspirados em Alice no país das maravilhas, começando pelo homônimo (de 1923) e seguindo em uma série de Alice Comedies. “O Gato Julius”, que apareceu em vários destes filmes, era uma cópia descarada de Félix. Julius na verdade é anterior aos filmes de Alice, mas não tinha nome.
- “A gente reclama” aparentemente seria apenas no nível pessoal. Não se encontrou registro oficial de reclamações.
- “Ele muda as orelhas!” refere-se a Osvaldo, o Coelho Sortudo, seguido de Mickey Mouse. Ambos eram muito parecidos com Félix, fora as orelhas.
quadro 4
- “Quando é que rato ganha de gato?” pode soar implausível, mas acontece com frequência nos desenhos animados.
quadros 5-6
- A piadinha visual está em Otz prendendo seu rabo à palavra “vácuo” para criar um aspirador (a vácuo). É uma homenagem ao modo como Félix usava seu rabo de tudo que é jeito.
quadro 7
- “Lembro que a Marjorie trouxe um gato preto da rua e me inspirou”: uma das (várias e contraditórias) declarações que Sullivan fez quanto à criação de Félix.
quadro 8
- Otto Messmer inspirou-se no pioneiro do cartum e da animação Winsor McCay. Moore homenageia McCay (especificamente sua criação Little Nemo) no conto em quadrinhos “In Pictopia!” [no Brasil, publicado na coleção Histórias Brilhantes], no Big Nemo da Electricomics e em Providence n. 8, p. 14-15 [no Brasil: a última história de Providence vol. 2].
Página 5
quadro 1
- Os quadros 1-8 e até metade da página seguinte formam uma sequência em plano fixo.
- O retrato provavelmente seja da esposa de Sullivan, Marjorie (citada na p3q1) desenhada tal como a ícone dos primórdios do cartum, Betty Boop.
quadro 2
- O “jantar em homenagem ao McCay” aconteceu em 1927.
quadro 3
- “Diz Pat Sullivan nos créditos” é verdade. O nome do Sullivan era o único que aparecia (fora os créditos do estúdio em “presents”).
quadro 4
- “Anne” é a esposa de Messmer, citada em p3q5.
Página 6
quadro 1
- Esta sequência utiliza vários clichês dos primórdios do misto animado e filmado: a mão do criador aparece, manipula, desenha e apaga a realidade animada. Um exemplo de curta com todos estes clichês é “Koko – The Fade Away”, de 1927. Ver também “Duck Amuck”, da Warner Brothers, de 1953. Também há referência a estes clichês no final do volume Minds, do Cerebus de Dave Sim.
quadro 6
- Embora a frase refira-se aos criadores de animação, as palavras “E-eu nunca tive escolha” ecoam a crença de Alan Moore no eternalismo, da qual ele trata com toda intensidade em seu livro Jerusalem.
quadro 7
- “Meu personagem tão ridículo” refere-se tanto a seu caráter quanto a sua situação de personagem fictício (e quem sabe a suas afirmações ridículas de que foi criador de Félix).
quadro 8
- “O t-tempo que eu tive na cadeia” refere-se à condenação de Sullivan por estupro – citada em p3q6.
- “Tudo escuro. A-acho que era pra se destacar”: tal como o próprio Félix. Otto Messmer, ao criar Félix, afirmou: “Faz ele todo preto, entendeu – aí não tem que dar bola pro contorno.”
Página 7
quadro 1
- Os quadros 1-8 voltam a ser uma sequência em plano fixo.
- “Como se a gente fosse preso nas células” refere-se às células de animação. O termo na verdade vem de cel, que é abreviação de celluloid – as películas transparentes que os antigos animadores usavam eram de celuloide.
quadro 3
- A ideia do fundo preto que prende um personagem foi usada em “Duck Amuck”.
- “Quem sabe eu uso meu rabo” – referência a como Félix usava seu rabo de várias maneiras improváveis.
quadro 4
- “de cabeça no nanquim” lembra Out of the Inkwell, série preliminar de curtas animados que misturavam animação e cenas fotografadas, tal como esta sequência.
Página 8
quadro 2
- Os temas egípcios na câmera reforçam a temática purgatório/além que se vê na narrativa que emoldura cada conto de Purgatorio. Moore (junto ao diretor Mitch Jenkins) tratou da mitologia egípcia sobre o além no curta-metragem His Heavy Heart, de 2014.
- As outras máquinas parecem crânios, quem sabe monstros, com olhos voltados para a narradora.
- “É modelo antigo, talvez você não esteja acostumada, mas está plenamente operacional” tem duplo sentido. Pode referir-se à câmera, mas é interpretado pela narradora como uma referência ao corpo do gerente.
quadro 3
- O monstro feminino com tentáculos – alguma sugestão? (Não lembra a Criatura da Lagoa Negra.)
- “O Coração Rastejante” foi citado em Purgatorio n. 2, p2 [no Brasil: Cinema Purgatorio vol. 1, segunda história]
- “Amor em Pelo” – sugestões? (Pode ser um pornô qualquer.)
- Os três itens acima reforçam a ideia da sexualidade feminina ameaçadora, sufocante. Pode ser assim que o gerente vê a narradora – ou como ela teme que ele veja.
- “Dopácula” – ver “Após Tombstone”, p2.
- “O Crepúsculo de um Rei” é o título de Cinema Purgatorio n. 4 [no Brasil: Cinema Purgatorio vol. 2, primeira história]
- “Mãe Riley” faz parte da série que aparece em Purgatorio n. 6, p1q3 [no Brasil: Cinema Purgatorio vol. 2, terceira história]
- “Confissões de uma Mulher Nua” – ver Purgatorio n. 2, p8q2 [no Brasil: Cinema Purgatorio vol. 1, segunda história].
quadro 4
- Da esquerda para a direita:
- Um lanterninha?
- “A lanterninha manca”
- A bilheteira
- Homem desconhecido?
- Outro lanterninha?
quadro 5
- Como este não é o último capítulo, “Nunca” soa improvável.
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