LENDO

Aâma e Peeters

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No ano passado ou retrasado, teve um momento em que comecei a imaginar o mundo desenhado pelo Frederik Peeters. Acho que foi depois de ler Castelo de Areia (duas ou três vezes) e Pachyderme (duas vezes). Sempre tenho essa sensação quando passo muito tempo nas páginas de um desenhista só. É como sair de um filme e esperar que o mundo tenha o mesmo ritmo; no caso, começo a ver tudo no traço da HQ. Só que, com Peeters, passei algumas semanas vendo um mundo peetersiano.

Não que Peeters tenha um estilo muito expressionista, ou forte, ou singular. É um desenho clássico. Cada vez mais clássico, aliás. O jeito como ele constrói a massa dos personagens, a tridimensionalidade das cenas, é Milton Caniff de tão clássico. Mas em mim teve um impacto que eu não esperava. Pode ser por causa das relidas e por ficar folheando com aquela vontade de reler.

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Li e reli os dois volumes de Aâma – que saíram no Brasil este ano pela Nemo, com tradução do Fernando Scheibe – com esse mesmo embrenho que tenho nos outros álbuns do Peeters. A trama não se entrega fácil. Entendo que estamos no futuro distante, que Verloc Nim – o protagonista que tem saudades do mundo pré-digital, pré-implantes, quando as pessoas não andavam com robôs e ainda tinham livros de papel – partiu com o irmão numa viagem para descobrir o que aconteceu num planeta em processo de colonização, e que algo lá deu errado por causa de um negócio chamado Aâma. Fora isso, Verloc não superou a separação da mulher e da filha. E é… isso?

Peeters já declarou que queria fazer um sci-fi clássico. Tem robôs, tem aliens bichentos, estranho em terra estranha, o homem mexendo com o que não devia, ciência versus mundo natural. Também tem robôs brigando com robôs, explosões e, no final do volume 2, uma cena gore digna do primeiro Alien. Sim, tem muita coisa de sci-fi clássico. Mas ele não conseguiu ficar no convencional.

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Assim como em Pachyderme, a narrativa tem algo de psicológico. Psicanalítico, quem sabe. O mundo interno do protagonista vira filtro do que ele vê no mundo externo. Isso fica mais óbvio nas cenas de sonhos. Não são muitas, mas tem uns cortes abruptos entre as cenas (às vezes dois ou três quadros em cenas totalmente distintas) que se repetem quando o personagem está desperto. As páginas iniciais dos volumes têm disso – vide acima o início do volume 2.

E tem os olhos. Os personagens de Peeters estão sempre nos encarando. Muitas vezes é Verloc, o protagonista, mas a maioria é a câmera subjetiva de Verloc: os outros personagens nos olham sem dó, nos julgando, desafiando, questionando ou buscando compaixão. Peeters adora os olhos fitando o leitor. Prefere que essas encaradas contem a história, e aí abandona o texto. É simples, mas é de uma profundidade que nem todo quadrinista consegue encaixar no ritmo certo.

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Aâma, como eu já disse, não é tranquila e acho que só vou colocar os pés no chão e dizer que captei lá no último volume – que saiu há um mês na França, possivelmente no próximo ano aqui. Até lá, acho que vou ficar relendo estes dois.

Mas enfim: estou feliz que Peeters esteja sendo publicado no Brasil. Ainda acho que Blue Pills seria sua obra mais simpática para conquistar o público (resenhei ela aqui). Mas se as editoras preferem começar pelo material mais complicado, não vou reclamar. Aliás, achei curioso que a Nemo – que às vezes soa como o desvario do francês que foi a uma livraria brasileira e ficou abismado quando não encontrou uma prateleira de Moebius – tenha se interessado em publicar um material tão recente. E de Peeters. De qualquer maneira, só posso agradecer pela opção.

(É óbvio que não faz mal Aâma ter ganhado prêmio de Melhor Série em Angoulême no ano passado.)

A propósito: Blue Pills me deixou com alguns dias com aquele sorrisinho de êxtase, de quem leu coisa boa. Óbvio que já reli muitas vezes. Não lembro se foi depois dela ou depois de Castelo de Areia que comecei a montar uma biblioteca Peeters – a maior parte da qual ainda tenho que ler: Lupus, RG, Koma e, sim, até a reedição de Pilules Bleue (só em francês) com a história prolongada. Estou esperando a hora certa para me embrenhar.

Mais sobre Aâma, volume 1, pela Nemo.

Mais sobre Aâma, volume 2, pela Nemo.

Site oficial de Frederik Peeters.

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