LENDO

Tungstênio, Marcello Quintanilha

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Tungstênio passa do primeiro ao segundo ato por volta da página 50. É nela que Richard, o policial gordinho e casca grossa, sai correndo pela praia de Salvador após receber um telefonema. Nas páginas seguintes, entramos nas memórias de Richard: bandidos que começam a atirar num bar ao ar livre, uma prisão à paisana no shopping center, empenho suado para entrar num ônibus em movimento, o tiroteio com traficantes nas escadarias escherianas de morro. Foram os momentos em que ele teve que agir rápido para ficar vivo, que ele chama de “levantar e correr”. As cenas são entrecortadas pela sua corrida presente, na praia. Todos os outros momentos serão revisitados ao longo da HQ.

A forma como Marcello Quintanilha opera com flashbacks é o maior destaque de Tungstênio. É fácil fazer uma referência ao cinema – flashbacks entrecortados com o presente narrativo aparecem em qualquer blockbuster. No cinema, porém, você tem recursos como luz, trilha sonora e outros para diferenciar as cenas atuais e passadas. Na página de quadrinhos – em preto e branco, ainda mais – é preciso habilidade para conduzir o leitor nas quebras da linha temporal sem usar os óbvios indicadores de lugar e tempo, ou variações no desenho. Quintanilha não usa nenhum destes.

O quadrinho contemporâneo – digamos que o quadrinho blockbuster contemporâneo – tende a mudar de página a cada mudança de cena. Nas revistas de super-herói, enche-se a página de diálogos ou do inverso, momentos de mudez, para que a mudança de contexto aconteça na página seguinte. Nas graphic novels, a preferência é por cenas que se prolonguem por várias páginas. Aí é fácil chegar às 300, às 400, quem sabe mais. É a narrativa decompressed, ou distendida.

Jaime Hernandez talvez seja o mais notável contemporâneo que toma a contramão. Uma cena pode terminar no primeiro ou segundo quadrinho da página, e a mudança de cena – elipse temporal, inclusive – acontece ali sem indicação. Se fosse um livro em prosa, a impressão seria de que você mudou de capítulo sem nem mudar de parágrafo.

Quintanilha também anda nessa contramão. O leitor tem que aprender a ler seu ritmo. Pela terceira ou quarta vez que ele usa o recurso, você já está instruído: é nos momentos de tensão, quando a vida do personagem em foco aperta, que a linha temporal se quebra.

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Também pode-se pensar esse recurso não só como exploração da vida pregressa dos personagens, mas como uma forma de variar o ponto de vista e internalizá-lo. Os flashbacks funcionam como associações de memórias que nosso cérebro faz a todo momento – e faz mais rápido em momentos tensos. Mesmo que Tungstênio tenha um narrador onisciente (o qual você também precisa instruir-se a diferenciar dos pensamentos dos personagens), os flashbacks mostram – efetivamente mostram, sem texto – que estamos vivendo a cabeça de Richard, ou de Keira, ou do traficante pé-de-chinelo ou do ex-sargento. Para quem diz que uma narrativa com imagens não oferece a profundidade de vidas internas da literatura em prosa, aí está um bom exemplo do engano.

Também é interessante que, entre estas idas e vindas na linha temporal, a trama transcorre praticamente no exato tempo de uma leitura de capa a capa. Cento e oitenta páginas contam aproximadamente trinta, quarenta minutos de tramas interligadas em Salvador.

Queria falar somente sobre esse ponto do álbum, mas tem outro que não tenho como ignorar: os diálogos. Com uma dificuldade tão grande para a escrita de diálogos fluidos em todo tipo de narrativa no português brasileiro – quadrinhos, cinema, telenovelas, literatura –, a capacidade de Quintanilha é notável. Ele não só registra a informalidade, mas também, como identificam leitores soteropolitanos, consegue registrar o sotaque baiano (que não é sua terra natal; o autor é nitoreiense e mora em Barcelona). Como lido com isso diariamente na tradução, tendo que explicar a revisor e editor que não há um “que” a mais em “o que que é isso?”, fico feliz em ver Quintanilha manter “tu é é um vendedorzinho de fumo marca bosta” sem precisar de um [sic] em seus “és”.

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Tungstênio na página da Editora Veneta. (Obrigado à Veneta pelo envio de exemplares.)

Entrevistas com Marcello Quintanilha sobre Tungstênio: Jornal A TardeJornal do Commercio, Revista O Grito, UOL

Blog do Marcello Quintanilha

Resenhas: Paulo Floro, Ronaldo Bressane

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