QUADRINISTAS

Denny Chang: MAIA

Maia é um conto mínimo. Pai e filha vão juntos para casa; os dois criam uma relação afetiva com um gato; os planos de jantar dão errado: basicamente é isso que se passa nas 42 páginas. Não estrago a leitura de ninguém ao contar o que acontece na história. O que importa não é o que é contado, mas como – e isto seria bem difícil de descrever. Também seria difícil estragar a leitura de Maia.

A HQ de Denny Chang foi publicada há algum tempo no site Electrocomics (e continua lá, em inglês). Em março, saiu em português dentro da Coleção Franca, o projeto da Narval Comix que já publicou metade de suas 10 revistas com uma mistura de nomes bem conhecidos (Allan Sieber, Marcelo D’Salete, Pedro Franz) ou relativemente novos (Chang, Laura Lannes, Eduardo Belga) no quadrinho nacional.

Convidei Chang para escrever o que quisesse em torno de Maia. Ele falou principalmente sobre suas inspirações cinematográficas. Confira o texto e depois, se ainda não leu, não deixe de ler Maia.

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Quando o Rafa [Coutinho] me convidou para participar da Coleção Franca, já sabia que queria trabalhar uma história que envolvesse um pouco a tradição da comida e a relação das pessoas com ela e a partir dela.

A primeira ideia que tive foi adaptar um conto que gosto muito do húngaro Géza Csáth, que se chama “Matricídio”. Em poucas páginas, ele conta a história de dois irmãos que decidem matar a mãe como prova de amor a uma prostituta pela qual estão apaixonados. Eu ia tomar a liberdade de usar essa estrutura e inserir os temas que queria trabalhar, da maneira que achasse melhor. Queria que esse tema da comida, a forma como ela conecta as pessoas, o enorme papel afetivo e sua característica atemporal e de relação com morte e sexo tivessem importância, atuando como um personagem secundário. No fim, depois de algumas (várias) dificuldades, entendi que essa história teria que ser maior e precisava de mais tempo para que as coisas acontecessem. Ou seja, não ia caber na proposta da coleção.

Fiquei um tempo trabalhando algumas ideias na cabeça, mantendo em foco a questão da comida. Na época estava mergulhado na filmografia do Yasujiro Ozu, que é um dos meus cineastas preferidos. Fico em êxtase com o estilo formal e como ele o articulava para as histórias que gostava de contar, sobre choque de gerações e valores.

Outro diretor que me influenciou nesse momento, também japonês, foi o Hirokazu Koreeda. Ele tem algumas semelhanças com o Ozu, às vezes temáticas, às vezes de estilo. Mas o primor nos filmes do Koreeda é o trabalho com as crianças e o ponto de vista delas sobre suas famílias e tudo que está acontecendo ao seu redor.

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A comida está muito presente nos filmes desses dois diretores. Os personagens comem, se reúnem ao redor da mesa e conversam e muitos dos dramas de cada história acontecem nesses momentos. Nos filmes do Ozu sempre tem uma chaleira em quadro, aquecida, pronta para servir o chá que vai acompanhar algum diálogo, ação etc.

Por último, fui tocado pelo filme Comer, Beber, Viver, de Ang Lee (Yin shi nan nu, 1994). Nesse filme ele amarra tudo o que me interessava fazer. A relação familiar, a comida, as pequenas histórias, momentos e tristezas que compõem o cotidiano.

Mais ou menos nesse momento surgiu a ideia para Maia. Uma história simples e direta, um recorte da vida e relação entre pai e filha e todas as coisas que surgem do que estão vivendo, enquanto decidem o que vão jantar. Sem explicações e didatismos cretinos. Tudo tinha que estar sugerido, subentendido através dos desenhos, dos silêncios, de falas/diálogos aparentemente banais.

Gosto muito do banal. Do que chamam de banal. Existe uma grande força narrativa e emocional que pode ser extraída do banal, do micro, do rotineiro, do aparente e enganoso tédio. Existe toda uma vida aí.

Esses dias estava pulando de canal em canal na tv e parei no filme Up! Altas Aventuras. Curiosamente, peguei no momento que o menino, Russell, fala sobre seu pai. Conta como ele era bom em acampar, fazer fogo com pedras, como participava dos encontros dos escoteiros e que eles costumavam sair para tomar sorvete juntos e, sentados no meio-fio, um contava os carros azuis, o outro, os vermelhos. Quem contasse mais carros, ganhava. Então ele conclui: “Eu realmente gostava disso. Talvez tudo isso pareça um tédio, mas eu acho que é das coisas entediantes que eu mais me lembro.”

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De um ponto de vista técnico, utilizei mais uma vez o Ozu como referência visual, enquadramentos e edição. Senti que era coerente com a história e surgiu também a vontade de fazer uma homenagem. É curioso que quando terminei de desenhar todas as páginas, percebi que muitas vezes tinha enquadrado os personagens da mesma forma que o Ozu enquadrou pai e filho no filme Era uma vez um pai (Chichi Ariki, 1942).

Acho que daí também surgiu naturalmente a escolha do material para desenhar. O lápis e grafite para sujar em diferentes intensidades, e ao mesmo tempo abrir pontos de luz, remetem um pouco a cinema antigo. E a impressão do livro, que puxou mais ainda o preto, “baixando” a luz das cenas e intensificando a sujeira, estabeleceu essa sensação.

Por fim, acho que Maia marca um novo momento pra mim, por algumas escolhas. Acho que o desenho foi para outro nível, abriu novas possibilidades. Foi minha primeira história urbana e gostei muito de ambientar. Até então só tinha trabalhado cenários ermos e de litoral.

Acho que ficarei por um bom tempo nesse caminho, tenho novas ideias para colocar no papel. Quero seguir explorando (e dar mais atenção) ao tema da comida. Ele é importante pra mim e tenho muito interesse, basicamente por ter um papel forte na minha família. Noto que isso é inerente à minha vida, à minha rotina. É muito presente na minha casa: pontua momentos da relação e dinâmica que tenho com a minha mulher, por exemplo.

E acho melhor encerrar por aqui, mais do que isso é estragar a experiência e surpresa que cada um pode ter com o livro. Boa leitura!

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