TRADUZINDO

Lorde Gato Era Porto: Traduzindo Lumberjanes

Lumberjanes: Cuidado com o Sagrado Gatinho saiu no final de 2016 no Brasil (e em Portugal). Foi minha primeira tradução para a Editora Devir.

A série original, norte-americana, tem só três anos de idade. Foi criada na Boom!Studios, editora pequena que estava montando uma linha de HQs um pouco mais autoral e para explorar mercados alternativos (alternativos para o mainstream dos EUA). No caso, o de meninas.

A premissa: um quinteto de escoteiras que têm aventuras sobrenaturais na floresta. A série já foi chamada de “Goonies com garotas”. Todas as autoras são mulheres: Shannon Watters, editora que concebeu o projeto, a roteirista Grace Ellis e a desenhista Brooke A. Allen; Noelle Stevenson, autora de Nimona, ajudou nos roteiros no início. Lumberjanes ganhou dois prêmios Eisner no primeiro ano e em seguida teve direitos vendidos para o cinema – diferente da maioria das HQs vendidas pra Hollywood, o projeto do filme está andando de verdade.

O texto de Lumberjanes em si é um troço complicado: várias referência ao universo de escoteiras, linguajar pré-adolescente e bastante piada com trocadilho. Os trocadilhos linguísticos – e, como é quadrinho, às vezes trocadilhos com texto e imagem – fazem parte da narrativa. No caso específico deste volume, ainda tinha anagramas.

O processo de tradução foi incomum, pois tive longas conversas com uma das editoras (em Portugal). Por isso acho que vale a pena comentar algumas coisas da tradução aqui.

Escotismo: No mundo da HQ, Lumberjanes são uma categoria de escoteiras. A HQ é cheia de pastiches do escotismo real. Tem partes do Manual Lumberjane, que aparece entre cada capítulo, que são quase cópias de manuais de escotismo das antigas. Cacei bastante referência sobre escotismo feminino no Brasil e li trechos de alguns manuais do início do século passado. Descobri que o juramento que os escoteiros fazem (pledge, no original) no Brasil chama-se “promessa” e mantive medidas estrangeiras como jardas, milhas e pés porque os manuais brasileiros também usam o sistema inglês.

Há uma referência textual à promessa das Brownies – categoria inicial do escotismo, nos EUA e Inglaterra – no final do volume, apesar de o nome da organização não ser citado. Como traduzir perderia a referência, sugeri adaptar para a Promessa da Fada e do Mago que as Bandeirantes fazem no Brasil (“Prometo esforçar-me sempre para: 1. Ser amiga de Deus e da minha Pátria, obedecendo às leis da Fada e do Mago; 2. Fazer todos os dias uma Boa Ação a alguém.”). Editores preferiram a tradução literal (rimada) que está na terceira capa.

Lenhadamas: Lumberjanes é uma grande sacada para feminilizar o termo lumberjack – lenhador, madeireiro, também o cara que sabe viver na floresta. Apresentei algumas opções de tradução para o título da série: falei em “lenhadamas” e também “lenhadivas”, mas não gostei de nenhuma. O raciocínio que levou à criação do termo “Bandeirantes” no Brasil como tradução de girl scouts apontava “Bandeirantes” como boa tradução. Mas aí seria usar o nome de uma organização que existe no mundo real, o que não é o caso das Lumberjanes.

Defendi que se mantivesse o título original. Acho que nem precisava ter argumentado: nestes casos de séries de sucesso, com grande chance de adaptação para cinema e o escambau, 90% das vezes mantém-se o título original.

Tops!: Há termos, bordões, slogans, gritos de guerra e outras coisas que só funcionam com mão um pouco mais pesada do tradutor.

As Lumberjanes ficam no “Miss Qiunzella Thiskwin Penniquiqul Thistle Crumpet’s Camp for HARDCORE LADY-TYPES”. Minha primeira proposta pras camp for hardcore lady-types era “acampamento para menina porrada” (assim mesmo, no singular). Por decisão editorial, virou “meninas da pesada”.

“Friendship to the Max!”, o grito de guerra das Lumberjanes, virou “Amizade é Tops!”

E, como as meninas não usam impropérios, o “what the junk?” da Mal virou “Mas que caramba?”

Santas: Normalmente me oponho a notas de rodapés nas traduções de HQ. Fora a questão da interrupção da narrativa – que também acontece na prosa -, na HQ as notas afetam a composição da página. Mas é um preciosismo meu que sei que muito leitor não compartilha. Em Lumberjanes, as personagens usam muitas exclamações inventadas com figuras femininas – “Santa Joan Jett!”, “Mae Jemison divina!”, “Em nome da Phillis Wheatley!” – a maioria só de conhecimento (profundo) da leitora norte-americana. Como alguns nomes exigiriam Google até do leitor de lá, pensei que deveria mantê-los sem explicação também na edição brasileira. A editora achou que não: aparecem notas de rodapé, que ficaram curtas e bem integradas à arte.

Uma revisora da tradução sugeriu adaptações para personagens femininas brasileiras. Achei legal a proposta de trocar “Holy Mae Jemison” por “Minha Santa Dandara dos Palmares”, entre outras. Mas a editora optou pelos nomes norte-americanos.

Lorde Gato: E agora, a grande discussão: os anagramas. A começar pelo título desse volume… que está errado.

No original, a coletânea chama-se Beware the Kitten Holy (literalmente “Cuidado com o Sagrado Gatinho”). Como se revela na página 75, o original é um anagrama para “In the tower by the lake” (literalmente “Na torre próxima ao lago”). Como tradutor, minha função era inventar um anagrama que se transformasse em “Na torre próxima ao lago”, ou “Na torre às margens do lago”, ou “A torre perto do lago”.

Tinha um porém: uma imagem. As personagens imaginam o “kitten holy” e ele aparece desenhado como um gato de túnica, auréola e harpa. Então, minha mensagem anagramada precisava mencionar um gato ou gatinho com alguma coisa de santo, angélico ou beatificado.

Entre as opções que encontrei (muito obrigado ao construtor de anagramas do Wordsmith!), a que achei que cabia era melhor era “Lorde Gato Era Porto”. Que não faz muito sentido – tanto quanto “Beware the Kitten Holy” não faz muito sentido.

A editora, porém, não se convenceu do meu argumento. A opção literal que acabou no álbum, “Cuidado com o Sagrado Gatinho”, não fecha o anagrama. Tentei mudar a mensagem final para “A torre na margem do lago”, que geraria opções anagramadas como “Lorde Gato Remo na Grama” e “Lorde Gato Mora em Angra”, mas não toparam pelos mesmos motivos.

Quanto aos outros anagramas, que aparecem na sequência das páginas 74 a 76, tive um pouquinho mais de sorte. Seguem algumas soluções, do original para solução do original, para tradução e anagramação em português.

everyone throwing skis = Rosie knows everything = Rosie sabe tudo = adeus boi resto
a wet bovine tile = i want to believe = eu quero acreditar = o duque rei cratera
pee on seams = open sesame = abre-te sésamo = sambar oeste
either tot utter = the truth is out there = a verdade está lá fora = salada verde forte

No caso de “eu cigana que dente grosso”, vou deixar para os leitores. A dificuldade nessa começou pelo fato de o original ter saído com um erro – que uma das autoras comentou aqui. O original também fazia referência a um slogan publicitário antigão nos EUA, e busquei adaptar para um slogan publicitário não tão antigo no Brasil. Deixo para os entusiasmados por anagrama resolverem.

Como comentei antes, conversar sobre minhas opções com os editores que contratam meu trabalho, nestes anos que venho traduzindo HQ, é muito raro. Agradeço à Ana Lopes, da Devir, por me convidar para o papo e para fechar as decisões de tradução de Lumberjanes.

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